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Os impactos da transição de gênero

Atualizado: 27 de mai. de 2020

Entre a aceitação e a cirurgia, há um infinito mundo de questões a serem resolvidas na mente, corpo e sociedade


Por Isabela Oliveira e Flávia Viana

Laerte é considerada uma das artistas mais importantes da área de cartum e charge no Brasil  Foto: Divulgação
Laerte é considerada uma das artistas mais importantes da área de cartum e charge no Brasil Foto: Divulgação


Aos 50 anos, a cartunista e chargista Laerte Coutinho experimentou as sensações de liberdade e paz interior quando, ao aceitar o fato de que sente atração por homens, descobriu o interesse em se expressar socialmente como mulher. Quase duas décadas depois, com 68 anos e sem mais nada a esconder, declara-se e vive como transgênero. “Não sou um homem, tampouco sou uma mulher [...] Sou uma mulher trans, ou uma pessoa trans, ou uma mulher categoria aspirante, não tenho uma resposta só”, diz. Entretanto, após pesar os prós e contras, Laerte não realizou procedimentos para alterar o corpo.


Nunca é demais explicar: transgênero é todo aquele que não se identifica com o gênero que nasceu. Isso abrange pessoas que se compreendem como pertencentes ao oposto ou que são não-binárias - entendem a sua forma de se expressar para o mundo mais complexa do que o “masculino” ou “feminino”. Cada uma dessas pessoas podem ter diferentes orientações sexuais, que não estão atreladas à identidade de gênero, já que esse aspecto se relaciona exclusivamente com a atração sexual e afetiva. Sendo assim, as pessoas trans, da mesma maneira que as que não são, podem se identificar também como homo, hétero, bissexuais, dentre diversas outras denominações existentes.


A reação de Laerte se difere de muitas outras pessoas trans visto que, em grande parte, há a necessidade de buscar alterações corporais para conseguir ter qualidade de vida. Características como a presença dos seios e formas curvilíneas, em pessoas biologicamente do sexo feminino, e pelos e pênis, em nascidos homens, são algumas das principais características que causam extremo descontentamento e desconforto com a imagem no espelho. Essa sensação, que pode levar à depressão, chama-se disforia e é o principal motivo para os que não se identificam com o sexo de nascença buscarem transformações na aparência.

Esse não é caso da cartunista. “Já pensei em fazer implantes de seio. Não penso mais. Acho que, mesmo sendo uma cirurgia relativamente simples, sempre é uma cirurgia em alguém da minha idade. Pesei os prós e contras e achei que podia continuar como estava”. Laerte ressalta ainda a boa relação que tem com seu corpo e explica que, como todo mundo, também tem altos e baixos, assim como antes de se perceber transexual. “Somos boas amigas (referente a ela mesma e seu físico). Não mudou muito o que sentia em relação ao meu corpo. Em fases diversas, eu me sinto melhor ou pior”, explica.


Um corpo, uma história


Já com Lucca Najar, youtuber mineiro de 27 anos, o processo de compreensão sobre o corpo foi bem diferente. Em um de seus vídeos, Lucca conta que se sentia desconfortável desde os 13 anos, quando as mudanças começaram. “Junto com minha adolescência, chegou a puberdade e meus seios começaram a crescer. Isso foi péssimo para mim porque significava que, quando as pessoas me olhassem, rapidamente podiam ver que eu era uma menina”.


Aos 16, Lucca percebeu seu interesse por mulheres e passou a se identificar como lésbica. Sentiu também que roupas e cortes de cabelo usados por homens o deixavam mais confortável e passou a aderir esse estilo. “Fui me tornando essa lésbica mais masculina, comecei a usar calça larga, camisas de botão, não usava calcinhas comuns e fiquei assim por quase seis anos da minha vida”. Foi nessa época que conheceu a palavra “trans”, entrou em contato com outros homens que que assim se identificavam e percebeu o que nunca havia reparado antes. “Foi a primeira vez que vi um “antes e depois” de um homem trans e falei ‘É isso! Esse sou eu!”.


Então, Lucca buscou a terapia hormonal para adotar traços masculinos. A aplicação de

 O youtuber Lucca Najar com 10 e 28 anos, respectivamente Foto: Reprodução/Instagram
Além da hormonização, Lucca optou também por fazer a cirurgia de mamoplastia masculinizadora, na qual se reduz as mamas em um grau onde o tórax fica com aparência masculina. Hoje, o youtuber tem diversos aspectos do estereótipo de um homem cis - aquele que pertence biologicamente ao sexo masculino e se idêntica com o mesmo -, incluindo formatos corporais, como ombros largos, cintura mais reta e barba.

hormônios, tanto em homens quanto mulheres trans, cumpre o papel de trazer características físicas mais parecidas com o gênero no qual o indivíduo se identifica, podendo levar tanto à diminuição, quanto ao desenvolvimento dos seios, mudanças nos formatos da cintura e pernas, além de outras modificações na quantidade de pelos e massa muscular, por exemplo.


Além da hormonização, Lucca optou também por fazer a cirurgia de mamoplastia masculinizadora, na qual se reduz as mamas em um grau onde o tórax fica com aparência masculina. Hoje, o youtuber tem diversos aspectos do estereótipo de um homem cis - aquele que pertence biologicamente ao sexo masculino e se idêntica com o mesmo -, incluindo formatos corporais, como ombros largos, cintura mais reta e barba.




Para a psicóloga clínica Cleusa Sakamoto, a busca pela autoaceitação é a principal motivação que leva ao início do processo de transição, já que “é algo complexo e pode estar mesclado com outros aspectos de autoestima ou tem raízes com a história de vida. No atendimento psicológico, o profissional pode auxiliar o entendimento genuíno do mal estar, descontentamento e desejo de mudança”, diz. Inicialmente, a pessoa se sente infeliz e desconectada de si mesma e entende a relação entre os sentimentos e a forma como se identifica, começa a pensar na possibilidade de ajustar o corpo.


Outro exemplo de pessoa transgênero é Jazz Jennings, 19, americana que, desde os dois anos, demonstrou que não se reconhecia no corpo em que nasceu e, aos três, foi diagnosticada com Transtorno de Identidade de Gênero Infantil. “Eles (os pais) me levaram na médica e ela me mostrou duas bonecas: uma era menina, tinha o corpo de menina, e a outra era menino, tinha corpo de menino. E aí ela falou ‘como você é hoje?’ e eu apontei para o boneco. Então ela perguntou ‘como você quer ser?’ e eu apontei para a boneca”, lembra Jazz no primeiro episódio da série I am Jazz, exibida no Brasil pelo canal TLC como A vida de Jazz.


Da aceitação à mudança


O processo de transição vai muito além das decisões tomadas pela pessoa que quer mudar, visto que a família e os amigos também passam por um processo de aceitação e de desconstrução da imagem que têm daquele ente. No caso dos pais de Jazz, Greg e Jeannete, uma das maiores dificuldades foi aceitar o fato de que não era só uma fase e que, por isso, tinham que deixar o filho se apresentar ao mundo como uma menina. “Nós não estávamos preparados”, diz a mãe no primeiro episódio da série. Hoje, Jazz realizou a cirurgia de redesignação de gênero e é ativista defensora dos direitos LGBTQ+.


Assim como no caso de Jazz e de sua família, compreender a transsexualidade é um processo desafiador. Exatamente por esse motivo, o paciente que decide transicionar precisa do amparo de diferentes profissionais da saúde. Para o indivíduo que está passando pelo procedimento e seus parentes mais próximos, é indicado a terapia com um psicólogo, com o intuito de que esse momento de mudanças seja melhor compreendido. Já exclusivamente para o paciente, recomenda-se o acompanhamento com psiquiatra, endocrinologista e, se desejado, cirurgião.

Jazz Jennings realizou a cirurgia de redesignação de gênero em junho de 2018 Foto: Steven Pisano
Jazz Jennings realizou a cirurgia de redesignação de gênero em junho de 2018 Foto: Steven Pisano

O médico endocrinologista André Bicudo esclarece que “os hormônios utilizados são benéficos e úteis no processo de redesignação sexual, porém, são acompanhados de complicações graves e que podem levar até a morte quando não se faz um acompanhamento médico adequado, que permitiria a identificação precoce destas alterações”.


Esses efeitos colaterais podem ir de aumento de peso a problemas físicos letais, como infarto e AVC. “As principais complicações do uso da terapia com estrógenos - hormônio feminino - são o ganho de peso, piora da resistência insulínica, podendo levar a desenvolver diabetes, elevação da pressão arterial e alterações das funções do fígado. Além disso, podem ocorrer aumento dos marcadores de inflamação e de formação de trombos, o que, juntos, estão relacionados a um aumento de risco tromboembólico, como a trombose venosa profunda, e cardiovascular, como o acidente vascular cerebral (AVC) e o infarto. Podem ainda acontecer aumento dos níveis de prolactina, com a presença em alguns casos de prolactinomas (tumores produtores de prolactina). Também já foram descritos casos de câncer de mama e de próstata em mulheres trans em terapia estrogênica”.

Com relação ao uso de testosterona - hormônio masculino -, os efeitos colaterais mais comuns são o aumento da massa de glóbulos vermelhos (eritrocitose), hipertensão arterial, ganho de peso, alteração dos lipídios, alterações do fígado, surgimento ou piora de acne, alterações psicológicas e comportamento agressivo, de acordo com o endocrinologista.

A sociedade também exerce grande influência durante todo o processo de transição, visto que contribui na construção e quebra de estereótipos. "O que é feminino e o que é masculino são elaborações da cultura de cada povo e de cada época. Estão em constante mudança. Existem múltiplos modelos, muitos outros podem aparecer. E, sempre, serão resultado de buscas pessoais e inclinações particulares. Espero que estejamos caminhando para o que se poderia chamar de fim dos gêneros - na velocidade que for possível”, argumenta Laerte.


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