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Família e Homossexualidade

Atualizado: 14 de jun. de 2020

Caminhos para a aceitação de diversas formas de ser e amar


Por Monique Caroline


Foi na terceira série, quando sentiu uma atração pela professora, que Daiely Santos Souza, de 23 anos, percebeu que tinha algo de diferente com as outras meninas ao redor. Decidiu deixar isso de lado na época, mas, conforme crescia percebeu que não era só uma “fase”. Ela descobriu a homossexualidade com 16 anos, porém, se assumiu para a família com 18.


A aceitação de Daiely por parte da família, assim como acontece com a maioria das pessoas que assume a homossexualidade para os parentes, foi muito difícil. ”Meu mundo praticamente desabou, não foram só meus pais que vieram falar, meus dois irmãos mais velhos, minha avó.. meus tios até falaram que era fogo de palha”, relata.


Antes de se assumir de vez, Daiely já havia tentado contar para a mãe sobre sua orientação sexual. Porém, Lucineide Santos Souza, de 46 anos, reagiu muito mal e tentou privar a liberdade da filha de sair e se divertir. Daiely teve que namorar um homem para ter a autonomia de volta. “Às vezes eu ia mesmo sair com minhas amigas e ela não acreditava”, ressalta.


Lucineide sofreu no começo, principalmente por conta do preconceito. “Eu falei que não era certo, que eu não concordava, eu fiquei muito brava, porque sei lá... A gente cria os filhos e depois vai vendo outro jeito”. Contudo, ela já havia vivido uma história parecida no passado que facilitou sua empatia pela filha. O irmão de Lucineide também é gay e seu pai nunca aceitou na época. “Acho que ele sofreu muito por nunca ter se assumido, meu pai não aceitava isso, eles brigavam muito”, diz.


Mesmo com o choque inicial, foi mais fácil para Lucineide aceitar do que para o pai de Daiely. A mãe fala que o maior medo dela era que a filha fosse expulsa de casa pelo marido José Carlos dos Santos, de 44 anos. “Ela contou para meu marido e ele xingou tanto...falou um monte de coisa ruim. Falou que isso não era coisa de Deus, disse que era coisa do Diabo (foi muito engraçado, depois eu ri) e isso abalou um pouco a amizade dela com a gente, ela ficou estremecida”, conta Lucineide, entre risadas e palavras sérias.


Daiely diz que, no começo, José Carlos foi mais durão. Lucineide relembra uma conversa entre eles sobre esse assunto, em um dia que lavava a roupa e o marido se aproximou:


  • “É, agora eu tô bonito mesmo, com uma filha gay... uma filha sapatão!”

  • “Olha meu amor, é melhor a gente ter uma filha gay, sapatão do que ter uma filha bandida, uma filha que dê trabalho…”


Após as brigas e o impacto inicial, o pai de Daiely aceitou a sexualidade da filha. “Ele falou que ia continuar me amando pois ele é meu pai, e pai não abandona os filhos! Ele só pediu um tempo”, conta a filha, muito feliz em ter o apoio do pai que até hoje ela cumprimenta pedindo a benção.


"Eles são os amores da minha vida", conta Daiely sobre o amor que sente pelos pais José Carlos e Lucineide. (Imagem: arquivo pessoal)


Quando beijou a primeira mulher na vida, Daiely ficou muito pensativa e com a consciência pesada, crente que aquilo não era certo. Como havia crescido na igreja, aquilo era errado, ela era uma decepção. Assim como a filha, Lucineide também teve uma preocupação inicial por conta da religião. “Somos católicos, antes eu era muito praticante, meus meninos eram coroinhas. A Daiely era acólita, hoje ela é alcoólatra”, brinca a mãe.


Em junho de 2019, o Brasil se tornou o 43º país a criminalizar a homofobia e transfobia no mundo. Por decisão do Supremo Tribunal Federal, declarações homofóbicas começaram a ser enquadradas no crime de racismo. A pena é de um a três anos, e pode chegar a cinco anos em casos mais graves. Contudo, dizer em templo religioso que é contra relações homossexuais não é considerado crime e por esse motivo, a religião ainda é um obstáculo a ser superado por muitas famílias.


Hoje, a família se dá muito bem, e de acordo com Lucineide a relação entre mãe e filha até melhorou. “Antes dela se assumir, ela andava muito triste. Eu perguntava o que era e ela nunca respondia… às vezes chorando... ela só ficava “ai mãe, não é nada”. Atualmente, Daiely namora Gabriela Aparecida dos Santos Pereira, de 21 anos, há dois anos e toda a família se dá muito bem.


Daiely e Gabriela se conheceram no trabalho e namoram há dois anos. (Imagens: arquivo pessoal)


O irmão de Daiely também é homossexual. Luan Carlos dos Santos Souza, de 21 anos se assumiu para a família depois de Daiely, e por isso coisas foram mais fáceis para ele. “Eu tenho mais três filhos, um deles também é gay, então imagina mulher, tudo purpurina aqui em casa”. A mãe lembra da infância dos filhos dando risadas.“A Daiely gostava de brincar de bola, e o Carlinhos de se vestir de mulher”, conta.


Em casa, Daiely encontrou um espaço de amor e respeito com a mulher que ela se tornou. Mas fora dela, as coisas ainda continuam muito difíceis. “A sociedade é a que mais aponta o dedo na cara, é a que mais critica. Tanto preconceito na rua que eu tive que lidar... Já vi gente falando que vou pro inferno, que sou uma decepção pros meu pais, pra minha família, gente que não me conhece, e querendo ou não, isso é doído”, expressa.


Lucineide tem um conselho a dar para os filhos quando eles se deparam com pessoas preconceituosas (principalmente para alguns parentes que insistem em julgar). “Responde! Não te respeita? Responde! Pois ninguém paga nada para vocês. Vocês não vivem na casa de ninguém, nem vivem às custas de ninguém!”, exprime.


Pouco antes da homofobia e transfobia serem criminalizadas em 2019, um relatório feito pela entidade Grupo Gay da Bahia (GGB) apurou uma morte por homofobia a cada 23 horas no Brasil. Houve uma queda de 8% em relação a 2018, com 153 mortes (111 homicídios e 42 suicídios). Porém, aconteceu um aumento de 14% do número de homicídios, de 111 para 126. São Paulo é o estado que mais mata, com 22 óbitos.


Com tantos percalços que encontra na rua, Daiely descobriu em casa uma fonte de equilíbrio e amor, e sabe que mesmo com todos os preconceitos e dificuldades que ainda irá enfrentar, ela não está sozinha. “Só de saber que vou chegar em casa e ter o conforto do meu pai e da minha mãe... Já basta, já é o suficiente”, ressalta, emocionada.



SILVIO E ÍCARO


A história de amor e aceitação que envolve a vida de Daiely infelizmente não é a mesma de Silvio Valter dos Santos Júnior, de 19 anos. Ele descobriu a homossexualidade muito cedo, quando ainda era criança. “Era claro para mim que eu sentia atração por rapazes, mas eu relutava com esse sentimento porque eu era da igreja”, conta.


Um fator em comum com a história de Daiely é o envolvimento com a religião. Mas diferentemente da menina, a crença foi um fato mais decisivo na vida de Silvio. Seu pai, Silvio Valter Dos Santos, de 50 anos, era pastor, e ficou muito bravo. “Tivemos várias discussões, eles liam a bíblia na minha frente falando que aquilo era errado mas eu tinha convicção que era aquilo que eu queria! Mesmo em meio à essas discussões eu fui só afirmando o que eu sentia, só querendo ser viado”, diz.


Silvio não teve uma conversa com seus pais para lhes contar sobre a sexualidade: eles descobrirem quando ele tinha 13 anos por meio de uma conversa que mantinha com outro rapaz. Silvio já sabia que quando isso viesse à tona, a família brigaria muito. Tanto o pai, quanto a mãe Raquel da Silva, de 48 anos, não reagiram bem, e não aceitaram a orientação sexual do filho, por isso, ele mora com o namorado Ícaro Gorri, de 27 anos, e a família dele.


Mesmo com toda a confusão, algo bom veio quando ele se assumiu. “Eu me sentia mal porque era uma tensão que estava rolando dentro de casa, mas ao mesmo tempo comecei a falar mais sobre minha sexualidade para pessoas que eu não falava, tipo minhas amigas que não sabiam”, relata.


Tirando a prima Emily dos Santos, de 20 anos, e seus pais, mais ninguém da família sabe que Silvio é gay. Os parentes moram em Brumado, na Bahia, e quando perguntam de Silvio, os pais falam que ele mora com um amigo. Nem os vizinhos da antiga casa, em Itaquera, na Grande SP sabem, mas de acordo com Silvio “ Eles devem saber por causa do meu jeito né, eles faziam piadas e eu nem mexia nesse assunto porque sabia que ia gerar comentários que eu não queria”, conta.


Silvio já mora com o namorado há dois anos. Seus pais nunca foram visitá-lo e nunca viram Ícaro, sabem que ele saiu para morar com um rapaz mas nunca tocam no assunto. “Para eles ainda é tudo muito chocante (a essa altura do campeonato)”, expõe Silvio. Apesar de tudo, ele conversa com os pais e os visita sempre que pode. Mas a sexualidade e tudo que envolva o assunto, ainda é um tabu nas conversas. “Sou sempre eu que toco no assunto, eles não perguntam sobre nada, sempre sou eu mostrando o lugar que moro por fotos, ou falando sobre,, mas eles fingem que isso nem existe”, explica.


Para o psicólogo e sexólogo Giovane Oliveira, a falta de apoio emocional que a família estabeleceria com uma pessoa do grupo LGBTQIA+ acarreta em inúmeras outras saídas e até doenças no futuro. “Em comparação com a população geral, a população LGBTQIA+ tem uma incidência de ansiedade e depressão muito superior. A falta de aceitação, especialmente da família nuclear, contribui muito. [...] Se uma pessoa perde o apoio familiar, muitas vezes ela chega até a ser expulsa de casa, nesse contexto ela está muito mais vulnerável às drogas, a não seguir os estudos, a ser encaminhada para a prostituição, o tráfico... que são os únicos lugares em que ela vai ser aceita”, enfatiza.


Hoje, a palavra família foi ressignificada para Silvio. Ele mora com o namorado, a sogra, o cunhado e o namorado de seu cunhado, e conseguiu encontrar outra saída do que às ruas e sente que finalmente pode ser ele mesmo. “Hoje em dia eu me sinto bem em um lugar que as pessoas me aceitam, isso é muito importante, poder existir com pessoas onde você pode ser você mesmo! Eu amo essas pessoas pois elas me aceitam do jeito que eu sou, eu posso ser eu aqui nessa casa, que é minha casa!”, ressalta, com alegria.


Silvio e Ícaro se conheceram no carnaval de 2018 e se reencontram tempos depois. (Imagem: arquivo pessoal)


Silvio e Ícaro se conheceram no carnaval de 2018, mas não chegaram a ficar juntos na ocasião e se reencontraram um tempo depois. Silvio começou a frequentar a casa do namorado, e como as brigas eram constantes em sua casa, decidiu ficar por lá de vez.


Diferentemente de Silvio, a família de Ícaro sempre respeitou as escolhas dele. Ícaro conta que foi “informado” que era gay, pois sempre foi tratado de maneira diferente na família e sua mãe sempre soube da sexualidade do filho. Porém foi com 15 anos que de fato ele começou a se interessar por outros rapazes.


Até então, Ícaro não sabia que a família era mais aberta com relação à sexualidade, e como é de costume, também sentiu que seguir seus instintos naturais era errado. “Acho que isso é uma coisa muito recorrente para pessoas que são LGBTQIA+, a gente sempre está em uma posição de culpa enquanto não se entende e não se conhece”, enfatiza.


O pai de ícaro faleceu há muito tempo, antes mesmo dele se assumir com 16 anos. Na ocasião, não foi uma conversa, ele decidiu simplesmente chegar na mãe e avisar que estava com um rapaz, ela quis conhecer e pediu para o filho apresentá-lo. “Ela foi super incrível, poucas pessoas tem esse privilégio de ter uma mãe que aceite da uma forma tão rápida [...] a negação foi mais da minha parte, acho que eu transformei isso em uma coisa difícil de falar e lidar”, exprime, com amor.


Porém, foi apenas dentro de casa que Ícaro encontrou esse suporte. “A família que não mora comigo sempre foi muito homofóbica, racista e machista. Sempre muito vinculada à discursos de ódio. Para eles sempre foi uma vergonha isso, eles eram as pessoas que mais me repreendiam na infância em questão de comportamento, e isso não mudou depois que me assumi. Eles simplesmente ignoram a minha existência”, diz.


Ele encontrou muitos desafios fora do núcleo familiar também: teve que parar de estudar por conta da homofobia,e retornou depois para recuperar o tempo perdido e fazer o supletivo. Na época, morava em Campo Mourão, no interior do Paraná. Atualmente ele mora em Itaquera, na grande SP e não tem mais contato com que não o aceita. Mesmo assim, o preconceito prevalece. “Quando ando de mãos dadas com meu namorado ainda escutamos piadas, já ameaçaram bater na gente... referente também a esse inflamação política que a gente teve”, enfatiza.


A inflamação política a qual Ícaro se referiu ocorreu principalmente desde a última votação e com a eleição do presidente Jair Bolsonaro. A pesquisa "Violência contra LGBT+ no contexto eleitoral e pós-eleitoral", realizada pela organização Gênero e Número e financiada pela Fundação Ford, mostrou que 51% dos entrevistados sofreram pelo menos uma agressão desde as eleições de 2018. As mulheres lésbicas são as que mais declararam ter sofrido violência (57%), seguidas das pessoas trans e travestis (56%), gays (49%) e bissexuais (44,5%).

As dificuldades na rua persistem, mas voltar para a casa é um refúgio para Ícaro. O espaço de afeto e união que foi construído é essencial para o relacionamento familiar traçar outros assuntos mais importantes. “A orientação sexual já deixou de ser uma pauta em casa há muito tempo. Conseguimos trazer para o tecido da normalidade onde está a heterossexualidade. Para minha mãe isso é muito natural. [...] Falamos abertamente sobre qualquer assunto. Assim como uma família qualquer temos discussão e brigas, mas sobre coisas diversas, outros motivos que não sejam orientação, raça, credo, etc.”, conta.


De acordo com o psicólogo e sexólogo Giovane Oliveira, o apoio familiar é de suma importância na vida de uma pessoa homossexual, principalmente no momento de se assumir. “A família é o núcleo, aquilo que primeiramente a gente tem como uma referência de carinho e segurança. A família estar perto mostra o quanto a pessoa não está errado. Que ela não é louca, que ela não tem uma doença, que é uma pessoa normal que está passando por um processo que qualquer pessoa poderia passar”, explica.


O amor que a mãe de Ícaro e os pais de Daiely nutrem pelos filhos, foram capazes de libertá-los de qualquer preconceito. Esse mesmo amor ensinou que a família constituída com um membro do grupo LGBTQIA+ também pode ser de afeto, carinho, esperança e respeito. Uma família que cresce e se respeita de forma recíproca é almejada não apenas por Silvio, mas por muitos homossexuais que sofrem discriminação no Brasil e no mundo.


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